A dor do luto pela Covid

17 de junho de 2021,01h34m, insônia, tristeza profunda.

Compartilharei com quem quiser ler as próximas linhas. Trata-se do meu ritual particular de sepultamento.

É certo que moro longe da minha família, mas na data de hoje pouca diferença faria eu estar em Nova Odessa ou em Florianópolis – o isolamento seria semelhante.

Tenho um primo, o Tivinho. Crescemos juntos.

Há duas semanas o Tivinho não tinha nada. Seguia sua vida e tudo ia bem. Faz algumas horas que recebi a informação da sua morte pela Covid19.

Mandei uma mensagem para Sara (sua irmã) e perguntei: Prima, quer conversar? Ela disse: _ não Nobi, está doendo demais.

A Sara estava na funerária, perdida, assustada e com um grito de dor entalado na garganta. Desabafou comigo que não aguenta mais perder pessoas que ama.

Nossa família, juntas, já enterrou gente demais. Pessoas que nos eram caras; pessoas que foram embora cedo demais; pessoas que deixou um buraco que o tempo não preencheu.

Há um limite para a dor humana? Faz tempo que sou torturada por questões existenciais. Não escondo de ninguém minhas buscas acerca da minha humanidade e do quanto elas me perturbam. Sou uma incansável buscadora de respostas, seja na bíblia, na filosofia, na conversa com gente sábia (…) e quase nunca me contento com respostas simples.

Por um lado, minha inquietação me tornou mais humilde e trouxe até uma pitada de amadurecimento. Acredito que é graças às minhas fragilidades e à minha mente inquieta que hoje consigo enxergar beleza num dia comum; celebrar pequenos detalhes na minha rotina (como arrumar a cama com a Chinesi, por exemplo) e ter compaixão com a dor do próximo. Por outro lado, minha paciência com a bestialidade humana está mais curta.

A Covid aproximou a raça humana da barbárie.

Enquanto os médicos precisam escolher quem vive e quem morre, há pessoas que vão a internet debater politicamente uma questão que devia ser apenas de saúde pública; enquanto alguns morrem e deixam famílias devastadas, outros se arrumam para a próxima festa.

Eu abro a internet e vejo todo mundo especialista numa doença que ninguém conhece. Parece que todo mundo sabe tudo sobre um vírus que acabou de chegar.

Onde foi parar o bom senso?

A Sara escreveu: velório será de 20 minutos, com caixão lacrado, para 20 pessoas revezando.

Até isso a Covid nos tirou – o direito sagrado ao sepultamento.

Eu me lembro do dia que meu pai morreu. Entrei no carro com minha amiga Ivana, deitei-me no seu colo e disse: não vou conseguir ver meu pai dentro de um caixão. A Ivana disse, enquanto passava as mãos no meu cabelo: _ tudo bem Bia, nós entraremos quando você estiver pronta.

Nunca estive pronta, mas entrei mesmo assim e todo aquele ritual foi um passo essencial para o processo do luto.

Desde a Grécia antiga sepultamos nossos mortos. Quem não conhece a história das mulheres que queriam banhar o corpo de Jesus com um perfume caro?

Claro que teremos perdas, mas quais perdas são toleráveis? Minha amiga perdeu o pai aos 99 anos numa passagem que foi tão emocionante quanto o parto. Outro conhecido morreu após um período longo de tratamento contra um câncer agressivo. São casos que aceitamos com muito pesar, em reconhecimento a finitude humana.

Não é o caso do Tivinho que foi embora muito, muito antes da hora.

O mundo está banhado de sangue por mortes que não são vontade de Deus e esse mesmo Deus sofre por nos ver tão desunidos num propósito que deveria nos ser comum – a erradicação desse vírus.

 

 

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