Gastronomia Excêntrica e o Coronavírus

GASTRONOMIA EXCÊNTRICA E O CORONAVÍRUS

 

GASTRONOMIA EXCÊNTRICA ou OPÇÃO DE SOBREVIVÊNCIA?

Espetinho de barata, morcego ensopado, cobra assada. Quantos de nós, brasileiros, teria tamanha curiosidade gastronômica?

O mundo está apavorado com o novo agente infeccioso (coronavírus) que provoca sintomas de resfriado e revela-se letal. E não é para menos – o novo vírus já matou até agora 425 pessoas e estima-se que infectou por volta de 20 mil pessoas. Debates calorosos sobre o assunto são mais que esperado, são também necessários, afinal precisamos saber o que fazer para nos proteger, para combater, para ajudar…

Mas junto às informações absolutamente necessárias sobre a nova doença, não tem passado despercebido o pesado cajado de julgamento contra os excêntricos asiáticos e suas opções por alimentos peçonhentos.

É fácil e rápido torcer o nariz para aquilo que nos é diferente e fazer julgamentos precipitados.

No Direito, qualquer estudante sabe reconhecer que o direito ao contraditório (de ouvir a versão do outro) beira o sagrado. Contudo, mesmo nós da área jurídica, somos por vezes ávidos a proferir veredictos (opiniões) sem conhecer minimamente o contexto da situação. Falo aqui (também) de mim, que torci o meu nariz para o estranho hábito alimentar dos asiáticos e sua possível relação com a mutação do coronavírus.

Vírus têm a peculiar capacidade de mutação – ou seja, de modificar-se. De modo vulgar funciona assim: o vírus pula de uma espécie para outra e no corpo do novo hospedeiro se transforma em um vírus modificado/ adaptado. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o H1N1 – vírus que estavam nas aves foi para o organismo de porcos e chegou em nós (seres humanos). Sobre o coronavírus, consideram que a contaminação seja decorrente da ingestão de cobras e morcegos infectados.

Achei um vídeo impactante no YouTube com chineses comendo cobras (que se mexiam), morcego e ratos. Alguns dos comentários na descrição deste vídeo são esses:

  • Comem essas porcarias e depois empesteiam o planeta com doenças causadas por esses animais.
  • Povo nojento, não tem necessidade alguma em comer esses bichos, por causa disso todo mundo sofre com as consequência!!
  • Depois nao querem morrer esses diabo
  • Povo nojento comem essas merdas e infestam o mundo com os vírus que eles pegam tnc
  • Vei OQUE CUSTE ELES IREM LA E COMER UMA VAQUINHA , UM CARNEIRO UM PEIXE IGUAL A TODO MUNDO Mas NÃOOO , a china tem que ser a diferentona AGORA O MUNDO INTEIRO tá pagando por isso
  • Até agora to procurando explicação em minha cabeça para entender isso, ta um vazio total ! Nunca vi uma onça comer um morcego, mas to vendo um humano comendo rato. É serio isso?

 

Certa vez ouvi o Min. Gilmar Mendes dizer na TV que no Brasil cada cidadão fala e age como juiz de modo que sentença deveria ser ato proferido pelo ibope e não pelo Poder Judiciário. Sem fazer juízo de valor das suas palavras, até porque nem me lembro do contexto delas, realmente é preciso cautela com avaliações tão rasas.

Nesta semana minha irmã, Milene, compartilhou no grupo de WhatsApp da nossa família o texto de uma blogueira chamada Cecília Padilha.

Cecília viaja pelo mundo atrás de experiencias gastronômicas e escreveu um artigo que contribui de maneira significativa com o atual debate sobre as preferencias alimentares dos asiáticos.

No conforto da minha casa abri a geladeira e observei as comidas que guardo nela. Nada de bizarro há aqui, conclui. Mas o que seria um alimento bizarro? Bizarro para quem?

Sou brasileira e não fujo dos sabores da nossa comida – pelo contrário, acredito que comida boa, boa mesmo é a nossa. E não haveria motivos para eu pensar diferente, afinal sai do Brasil pouquíssimas vezes, não sou frequentadora de restaurantes estrangeiros e morei 2 anos em Minas Gerais – terra de COMIDA BOA em caixa alta.

Mas Cecília me fez olhar para um pouco além do meu umbigo.

Ainda é fácil se lembrar dos dias que o Brasil ficou em festa por sediar as Olimpíadas e a Copa do Mundo. Hospitaleiros como somos, fizemos questão de mostrar o que tínhamos de melhor: a feijoada e o brigadeiro estavam no topo da lista.

Para nossa mais absoluta surpresa, contudo, houve turista que comeu do nosso incrível docinho de chocolate e concluiu que era doce demais. Com a feijoada, por sua vez, houve até estrangeiro fazendo cara de nojo e recusando a degustação. Era difícil acreditar.

Atualmente existe uma discussão acerca da origem da feijoada. De acordo com o jornalista Leandro Narloch, a feijoada seria um prato oriundo da Europa – o cassoulet.

Independentemente do sotaque, o fato é que a feijoada que conhecemos aqui no Brasil é comida que causa estranheza em algumas pessoas e é um ótimo exemplo para nosso exercício de reflexão e empatia.

Ressalvada a teoria de Leandro, qualquer brasileiro se chateia diante do olhar de nojo de um estrangeiro para nossa panela. O desrespeito ultrapassa as preferências alimentares se considerarmos que a nossa feijoada é herança de uma história de abuso sofrida por negros escravizados em senzalas.

A Catarina, minha filha que hoje tem 1 ano e 10 meses, já experimentou feijoada. Foi a comida que a mamãe dela, com amor, colocou sobre a mesa. Ela não só comeu como viu todos a sua volta comendo. Logo, para a Catarina, nada de errado há na feijoada.

Um brasileiro ou outro pode até não apreciar o feijão preto cozido com miúdos de porco, mas por certo nunca fará cara de espanto quando vir alguém comendo. Eu, por exemplo, não gosto e não como vísceras de animais, mas sou neta de Baiano e não me soa absurdo alguém gostar de Sarapatel.

 

Pense agora na criança nascida na China ou em outro país asiático cuja “cultura alimentar” nos parece bizarra. Quando ela se senta à mesa não questiona se o ingrediente utilizado por sua mamãe no preparo da comida é ou não convencional para o resto do mundo. Se a mamãe disse que é comida, então eu como. Simples assim, como todo raciocínio infantil.

Cecília conta-nos que esteve recentemente no Camboja (país que fica entre o Vietnã e a Tailândia) e que conversou com pessoas que tiveram suas infâncias marcadas pela escravidão. Trata-se de vítimas de um regime comunista que recebeu o nome de Khmer Vermelho.

De forma resumida, o Khmer Vermelho foi liderado por um sujeito chamado Pol Pot que comandou o Camboja por 4 anos, entre os anos de 1975 e 1979 (uma história muito recente).

Fiz um rápido estudo sobre Pol Pot no Wikipedia e conclui trata-se de um terráqueo frustrado que por não saber lidar com seu fracasso saiu quebrando tudo o que via pela frente.

Nascido em família abastada (e provavelmente muito mimado), o tal Pol foi educado em um mosteiro budista e depois foi para Paris, estudar radio eletrônica na condição de bolsista.

A história sugere (para mim) que Pol não era um tradicional oriental estudioso e inteligente. Repetiu de ano, perdeu a bolsa e teve que voltar ao Camboja.

Aventurou-se como professor e lecionou geografia e história por um tempo. Depois virou líder de um partido comunista.

O frustrado então idealizou uma sociedade 100% agrária, sem qualquer rastro de tecnologia. Tenho comigo que isso foi o resultado da soma: fracasso + mágoa + psicopatia. E a mágoa não era pequena – Pol ordenou a destruição de qualquer objeto com traços de engenharia como carro, bicicleta, rádios, linha telefônica etc. Transformou os teatros, cinemas e museus em chiqueiro de porco. Todos aqueles que usavam óculos, relógio de pulso ou tivessem mãos não calejadas por enxadas eram sumariamente executados. Pensava Pol que sua “limpeza” resultaria numa sociedade purificada (veja aí você até onde chega uma tristeza não tratada em um indivíduo com alto ego).

As pessoas eram forçadas a trabalhar nos campos agrários, mas não podiam comer o que plantavam – trabalhavam 18 horas sob a mira de soldados armados e se alimentavam com 1 xícara de arroz por pessoa a cada 2 dias.

Viver situações tão extrema relativiza qualquer avaliação do é que ou não é palatável.

Cecília nos conta que:

Um período em (que) milhares de pessoas morreram de fome e começaram a comer tudo que viam pela frente, inclusive seus cachorros para poderem sobreviver (…) a pessoa acaba gostando e levando o hábito adiante mesmo após a guerra, em um país que até hoje ainda está em reconstrução e extrema miséria

 

(…) a pessoa acaba gostando e levando o hábito adiante mesmo após a guerra (…) – Pincei esse trecho do texto de Cecília porque ele ativa minha memória aos meus antigos estudos de criminalística.

De acordo com a psicanálise, pessoas mantidas por um período intenso e prolongado de intimidação passa a desenvolver simpatia por seus abusadores. É comum ocorrer em crianças que são abusadas por seus cuidadores – elas desenvolvem sentimentos de afeto por seu algoz de forma inconsciente e irracional como meio de amenizar as tensões existentes no processo. Esse mecanismo de defesa é chamado de Síndrome de Estocolmo.

(——————)

Comecei escrever esse artigo ontem de madrugada, dia 3 de fevereiro de 2020. Segui até este ponto porque então a Catarina acordou e o dia seguiu conforme a rotina que temos que cumprir. Passei o dia em jejum embora tenha preparado todas as refeições dela.

Hoje, retorno a este artigo também de madrugada. Tenho aqui comigo uma xícara de leite quentinho com café. Já reli tudo o que escrevi na madrugada de ontem, fiz pequenos ajustes…

Enquanto refletia sobre tudo que escrevi (para mim mesma), minha xícara esvaziou.

Uma pergunta está latente na minha cabeça desde ontem: até onde efetivamente eu iria se vivesse tempos de fome extrema? É difícil para mim imaginar-me comendo um rato, isso foge muito a qualquer circunstância que vivi até aqui. Mas não me parece absurdo ver-me preparando um bicho peçonhento para a Catarina – seria, naquele dia, a comida que a mamãe fez para ela com amor.

 

 

1 thought on “Gastronomia Excêntrica e o Coronavírus”

  1. E muito importante conhecermos e ouvirmos a história das pessoas antes de fazer qualquer julgamento
    Adorei a reflexão

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